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sexta-feira, 14 de setembro de 2012

Simões lopes Neto e Barbosa Lessa



JOGO DE OSSO 

— Pois olhe: eu já vi jogar-se uma mulher num tira de taba. Foi uma parada que custou vida… mas foi jogada! 

Um pouco pra fora da Vila, na volta da estrada, metida na sombra dumas figueiras velhas ficava a vendola do Arranhão; era um bochinche mui arrebentado, e o dono era um sujeito alarifaço, cá pra mim, desertor, meio espanhol meio gringo, mas mui jeitoso para qualquer arreglo que cheirasse à plata... 

Mui destravado da língua e ao mesmo tempo rezador, sempre se santiguando e olhando por baixo, como porco, tudo pra ele era negócio: comprava roubos, trocava cousas, emprestava pra jogo, com usura, e sempre se atrapalhava para menos, no troco dos pagamentos. 

Às vezes armava umas carreiritas, que se corriam numa cancha dumas três quadras que ele mesmo tinha arranjado a um lado do potreiro; então conchavava algum gringo tocador de realejo e estava preparado o divertimento. O que ele queria era gente, peonada, andantes, vagabundos, carreteiros, para poder vender canha e comida e doces; e de noite facilitava umas mesas de primeira, de truco ou de sete-em-porta para tirar o cafife. Doutras ocasiões ajeitava umas dançarolas que alvorotavam o chinaredo da vizinhança. 

Por este pano de amostra vancê vê o que seria aquele gavião. 

Duma vez que ele tinha trançado umas carreiras, com duas ou três pencas de patacão, e se havia ajuntado algum povo, tudo gauchada leviana, choveu. 
A chuvarada estragou a cancha, molhou as carpetas, atrapalhou tudo. 

E a gente foi ganhando na venda, apinhoscou-se por debaixo das figueiras e no galpão. 

Quando passou o aguaceiro e oriou o terreiro, deram alguns aficionados para jogar o osso. 

Vancê sabe como é que se joga o osso? 

Ansim: 
Escolhe-se um chão parelho, nem duro, que faz saltar, nem mole, que acama, nem areento, que enterra o osso. 

É sobre o firme macio, que convém. A cancha com uma braça de largura, chega, e três de comprimento; no meio bota-se uma raia de piola, amarrada em duas estaquinhas ou mesmo um risco no chão, serve; de cada cabeça da cancha é que o jogador atira, sobre a raia do centro: este atira daqui pra lá, o outro atira de lá pra cá. 

O osso é a taba, que é o osso do garrão da rês vacum. O jogo é só de culo ou suerte. 

Culo é quando a taba cai com o lado arredondado pra baixo: quem atira assim perde logo a parada. Suerte é quando o lado chato fica embaixo: ganha logo e sempre. 

Quer dizer: quem atira culo perde, se é suerte ganha e logo arrasta a parada. 
Ao lado da raia do meio fica o coimeiro que é o sujeito depositário da parada e que a entrega logo ao ganhador. O coimeiro também é que tira o barato — para o pulpeiro. Quase sempre é algum aldragante velho e sem-vergonha, dizedor de graças. 

E um jogo brabo, pois não é? 

Pois há gente que se amarra o dia inteiro nessa cachaça, e parada a parada envida tudo: os bolivianos, os arreios, o cavalo, o poncho, as esporas. O facão nem a pistola, isso, sim, nenhum aficionado joga; os fala-verdade é que têm de garantir a retirada do perdedor sem debocheira dos ganhadores... e, cuidado… muito cuidado com o gaúcho que saiu da cancha do osso de marca quente!... 

Pois dessa feita se acolheraram a jogar a taba o Osoro e o Chico Ruivo.
O Osoro era um moreno mui milongueiro, compositor de parelheiros e meio aruá; andava sempre metido pelos ranchos contando histórias às mulheres e tomando mate de parceria com elas. 

O Chico era domador e morava de agregado num rincão da estância das Palmas; e vivia com uma piguancha bem jeitosa, chamada Lalica. 

Nesse dia Unha vindo com ela ao festo do Arranhão. Enquanto os dois jogavam, a morocha andava lá por dentro, com as outras, saracoteando. 

Havia violas; havia tocadores; a farra ia indo quente. E os dois, jogando. O Chico perdia uma em cima da outra. 

— Culo! Outra vez?... Má raios!... 

— Suerte, chê! Ganhei! repetia o Osoro. 

— Jogo-te o tostado, aperado, valeu? Topo! 

E culo!... Isto é mau olhado dalgum roncolho mirone!... 

E relanceou os olhos pelos vedores, esperando que algum comprasse a camorra; ninguém se picou. 

— Jogo o teu ruano contra as duas tambeiras da Lalica! 

— E pouco, Chico!... Ainda se fosse a dona!... 

— Osoro, não brinca!... Pois olha; jogo! 

— O ruano? 

— O mano contra a Lalica! Assim como assim, esta china já está me enfarando!... 

— Pois topo! 

Os mirones se entreolharam, boquejando, alguns; eles bem viam que o gaúcho estava sem liga, que já tinha perdido tudo, o dinheiro, o cavalo, as botas, um rebenque com argolão de prata; e agora, o outro, o Osoro, para 
completar o carcheio, ainda tinha topado a última parada, que era a china... 
A cousa ia ser tirana; correu logo voz; em roda dos dois amontoou-se a gente
O Osoro atirou, e deu suerte... 

O Ruivo atirou, e deu suerte... 

— Ora, não deu gosto! disse um. 

— Outra mão! disse o outro. 

E o Ruivo atirou: culo! 

O Osoro atirou: suerte! 

— Ganhei, aparceiro! 

— Pois toma conta, ermâo! 

— Tu é que tens de fazer a entrega... 

— Não tem veremos... Trato é trato!... 

Já ia querendo anoitecer. 

O que se passou entre aquelas três criaturas, não sei; se juntaram num canto do balcão da venda e falaram. 

Por certo que o Chico Ruivo disse à china que a jogara numa parada de taba; o Osoro só disse uma vez: 
— Eu, se perdesse o ruano, o Chico já ia daqui montado nele... 

A Lalica deu uma risadinha amarela; olhou o Osoro, olhou o Chico Ruivo, cuspiu de nojo e disse pra este, na cara: 
— Sempre és muito baixo!..., guampudo, por gosto!... 

— Olha, guincha, que te grudo as chilenas!... 

— Ixe! Este, agora, é que me encilha, retalhado!...  

Nisto um violeiro pegou a rufar uma dança chorada; umas parelhas pegaram a se menear no compasso da música e logo o Osoro, para cortar aquele aperto, travou do pulso da morocha, passou-lhe o braço na cinta e quase levantando-a no ar entrou na roda dos dançadores; o Ruivo ficou quieto, mas de goela seca e nos olhos com uma luz diferente. 

Na primeira volta, quando o par passou por ele, a china ia dizendo mui derretida: 
— Quando quiseres, meu negro... 

Na segunda volta, como num despique, ela tornou a boquejar pro Osoro: 
— Eu vou na tua garupa... 

E na outra, a china vinha calada, mas com a cabeça deitada no peito do par, olhando terneira pra ele, com uma luz de riso, os beiços encolhidos, como armando uma promessa de boquinha; e o Osoro se esqueceu do mundo… e colou na boca da tentação um beijo gordo, demorado, cheio de desaforo... 

O Chico Ruivo teve um estremeção e deu um urro entupido, arrancou do facão e atirou o braço pra diante, numa cegueira de raiva, que só enxerga bem o que quer matar... 

E vai, como pegou o Osoro pela esquerda, do lado, meio por detrás, por debaixo da paleta, o facão saiu no rumo certo e foi bandear a Lalica meio de lado, sobre a esquerda da frente. 

Vancê compr’ende? Do mesmo talho varou os dois corações, espetou-os no mesmo feno, matou-os da mesma morte, fazendo os dois sangues, num de cada peito, correrem juntos num só derrame... que foi lastrando pelo chão duro, de cupim socado, lastrando... até os dois corpos baterem na parede, sempre abraçados, talvez mais abraçados, e depois tombarem por cima do balcão, onde estava encostado o tocador, que parou um rasgado bonito e ficou olhando fixe para aquela parelha de dançarmos morrentes e farristas ainda!... 

Levantou-se uma berraçada. 

— Matou! Foi o Chico Ruivo!... Amarra! Cerca!... 

Mas o Ruivo parece que voltou a si; coriscou o facão aos dois lados e atropelou a porta, ganhou o terreiro e se foi ao palanque onde estava o ruano do Osoro: montou e gritou pra os que ficavam: 
— Siga o baile!... 

E deu de rédea, no escuro da noite. 

O Arranhão acudiu ao berzabum; aquele safado, curtido na ciganagem, só soube dizer: 
— Pois é... jogaram o osso, armaram a sua paranda... mas nenhum pagou nada ao coimeiro!... Que trastes!...



Contos Gauchescos 
João Simões Lopes Neto 



Nos campos começaram a escassear os animais. Nos rios e nas lagoas, dificilmente se via a mancha prateada de um peixe. Nas matas já não havia frutas, nem por lá apareciam caças de grande porte: onças, capivaras, antas, veados ou tamanduás. No ar do entardecer, já não se ouvia o chamado dos macucos e dos jacus, pois as fruteiras tinham secado.

Os índios, que ainda não plantavam roças, estavam atravessando um período de penúria. Nas tabas tinha desaparecido a alegria, causada pela abastança de outros tempos. Suas ocas não eram menos tristes. Os velhos, desconsolados, passavam o dia dormindo na esteira, à espera de que Tupã lhes mandasse um porungo* de mel. As mulheres formavam roda no terreiro e lamentavam a pobreza em que viviam. Os curumins cochilavam por ali, tristinhos, de barriga vazia. E os varões da tribo, não sabendo mais o que fazer, trocavam pernas pelas matas, onde já não armavam mais laços, mundéus e outras armadilhas. Armá-los para quê? Nos carreiros de caça, o tempo havia desmanchado os rastos, pois eles datavam de outras luas, de outros tempos mais felizes.

E o sofrimento foi tal que, certa vez, numa clareira do bosque, dois índios amigos, da tribo dos guaranis, resolveram recorrer ao poder de Nhandeyara, o grande espírito. Eles bem sabiam que o atendimento do seu pedido estava condicionado a um sacrifício. Mas que fazer? Preferiram arcar com tremendas responsabilidades a verem a sua tribo e seus parentes morrerem de inanição, a míngua de recursos.

Tomaram essa resolução e, a fim de esperar o que desejavam, se estenderam na relva esturricada. Veio a noite. Tudo caiu num pesado silêncio, pois já não havia vozes de seres vivos. De repente, a dois passos de distância, surgiu-lhe pela frente um enviado de Nhandeyara.

– Que desejais do grande espírito? – Perguntou.

– Pedimos nova espécie de alimento, para nutrir a nós mesmos e a nossas famílias, pois a caça, a pesca e as frutas parecem ter desaparecido da terra.

– Está bem – respondeu o emissário. Nhandeyara está disposto a atender ao vosso pedido. Mas para isso, deveis lutar comigo, até que o mais fraco perca a vida.

Os dois índios aceitaram o ajuste e se atiraram ao emissário do grande espírito. Durante algum tempo só se ouviu o arquejar dos lutadores, o baque dos corpos atirados ao chão, o crepitar da areia solta atirada sobre as ervas próximas. Dali a pouco, o mais fraco dos dois ergueu os braços, apertou a cabeça entre as mãos e rolou na clareira...

Estava morto. O amigo penalizado, enterrou-o nas proximidades do local.

Na primavera seguinte, como por encanto, na sepultura de Auaty (assim se chamava o índio) brotou um linda planta de grandes folhas verdes e douradas espigas. Em homenagem a esse índio sacrificado em benefício da tribo, os guaranis deram o nome de auaty, ao milho, seu novo alimento. 

Barbosa Lessa - Estórias e lendas do Rio Grande do Sul.





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