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quarta-feira, 29 de agosto de 2012

Dona Cota, Seu Nivelbrando e Edu Cação



Era uma vez, em um reino muito, muito, muito distante, uma bondosa senhora chamada Dona Cota Maria. Ela vivia em uma vila no subúrbio de uma grande cidade daquele reino muito, muito, muito distante. Seu vizinho, seu Nivelbrando Silva, era casado com Dona Ana Fabeta e possuíam seis maravilhosos filhos. Apesar das dificuldades financeiras, a família de seu Nível, como os amigos o chamavam, vivia relativamente bem com seus serviços temporários, as faxinas de Dona Ana e a ajuda dos filhos maiores, que esmolavam nas esquinas deste reino muito, muito, muito distante. Mas o que realmente complementava a renda da família era o conjunto de benefícios concedido pelo reino proporcional ao número de filhos do casal e a renda da família, uma forma de assistencialismo que, segundo a oposição, tinha um caráter meramente eleitoreiro e acomodativo. 

E assim transcorria a vida neste reino muito, muito, muito distante. Mas seu Nível, apesar de tudo, não estava completamente feliz, pois gostaria que seus filhos tivessem as mesmas oportunidades que os filhos dos abastados proprietários e ricos senhores possuíam de frequentar as universidades públicas deste reino muito, muito, muito distante e se tornarem “doutores”. Em função da precária qualidade das escolas frequentadas por seus filhos, do baixo grau de escolaridade, das constantes greves de professores que prejudicavam a transmissão dos conhecimentos, dos baixos salários dos educadores e funcionários, da falta de incentivo dos governantes para com a educação, era muito difícil para pessoas como os filhos do seu Nível concorrerem com os filhos bem preparados em escolas particulares e cursinhos na “batalha do vestibular”, uma cerimônia de passagem que testava os conhecimentos dos pretendentes aos cursos superiores deste reino muito, muito, muito distante. 

Dona Cota, condoída com o sofrimento e angústia de seu Nível, dedicava grande parte do seu tempo livre tentando encontrar uma solução para o problema de seu querido vizinho. De tanto procurar, acabou descobrindo em uma revista antiga uma reportagem sobre outro reino muito, muito, muito distante, chamado Reinos Unidos da América, onde há muito tempo havia sido implantado “um sistema de vagas em instituições públicas ou privadas para grupos específicos classificados por etnia, na maioria das vezes negros e indígenas”, conforme estava escrito na revista. 

Eureca!, gritou Dona Cota com sua descoberta. Esta era a solução para o problema de seu Nível. Mas como tornar este sonho uma realidade? 

Algum tempo depois, continuando em suas pesquisas, Dona Cota encontrou a inspiração que lhe faltara ao fazer sua primeira descoberta. Era o discurso de um grande homem, morador daquele outro reino muito, muito, muito distante, chamado Reinos Unidos da América, e que dizia mais ou menos isso: 

“Quando os arquitetos de nossa república escreveram as magníficas palavras da Constituição e da Declaração de Independência, estavam assinando uma nota promissória de que todo norte americano seria herdeiro. Esta nota foi a promessa de que todos os homens, sim, homens negros assim como homens brancos, teriam garantidos os inalienáveis direitos à vida, liberdade e busca de felicidade. 

Mas existe algo que preciso dizer à minha gente, que se encontra no cálido limiar que leva ao templo da Justiça. No processo de consecução de nosso legítimo lugar, precisamos não ser culpados de atos errados. Não procuremos satisfazer a nossa sede de liberdade bebendo na taça da amargura e do ódio. Precisamos conduzir nossa luta, para sempre, no alto plano da dignidade e da disciplina. Precisamos não permitir que nosso protesto criativo gere violência físicas. Muitas vezes, precisamos elevar-nos às majestosas alturas do encontro da força física com a força da alma; e a maravilhosa e nova combatividade que engolfou a comunidade negra não deve levar-nos à desconfiança de todas as pessoas brancas. Isto porque muitos de nosssos irmãos brancos, como está evidenciado em sua presença hoje aqui, vieram a compreender que seu destino está ligado a nosso destino. E vieram a compreender que sua liberdade está inextricavelmente unida a nossa liberdade. Não podemos caminhar sozinhos. E quando caminhamos, precisamos assumir o compromisso de que sempre iremos adiante. Não podemos voltar. 

Digo-lhes hoje, meus amigos, embora nos defrontemos com as dificuldades de hoje e de amnhã, que eu ainda tenho um sonho. E um sonho profundamente enraizado no sonho norte americano. 

Eu tenho um sonho de que um dia, esta nação se erguerá e viverá o verdadeiro significado de seus princípios: "Achamos que estas verdades são evidentes por elas mesmas, que todos os homens são criados iguais". 

Eu tenho um sonho de que, um dia, nas rubras colinas da Geórgia, os filhos de antigos escravos e os filhos de antigos senhores de escravos poderão sentar-se juntos à mesa da fraternidade. 

Eu tenho um sonho de que, um dia, até mesmo o estado de Mississipi, um estado sufocado pelo calor da injustiça, será transformado num oásis de liberdade e justiça. 

Eu tenho um sonho de que meus quatro filhinhos, um dia, viverão numa nação onde não serão julgados pela cor de sua pele e sim pelo conteúdo de seu caráter. 

Quando deixarmos soar a liberdade, quando a deixarmos soar em cada povoação e em cada lugarejo, em cada estado e em cada cidade, poderemos acelerar o advento daquele dia em que todos os filhos de Deus, homens negros e homens brancos, judeus e cristãos, protestantes e católicos, poderão dar-se as mãos e cantar com as palavras do antigo spiritual negro: " Livres, enfim. Livres, enfim. Agradecemos a Deus, todo poderoso, somos livres, enfim.” 

Inspirada nessas sábias palavras do Sr. King, Dona Cota arregaçou as mangas e foi à luta. Precisava agora encontrar uma forma de demonstrar aos detentores do poder que a solução para os problemas de seu Nível e sua gente havia sido encontrada. Conversou com muita gente, participou de reuniões nas comunidades, nas igrejas e nos cultos, nas praças e nas ruas, até que o representante de um partido político que apoiava o governo viu em Dona Cota um potencial de votos para a eleição municipal que se aproximava. Convencida de que esta seria a melhor forma de atingir seus objetivos, filiou-se ao partido e iniciou a campanha com uma única proposta, a de ajudar seu Nível e seu povo humilde e carente. Com o passar do tempo, foi agregando novos entusiastas da sua proposta, pois muitos queriam que seus filhos tivessem a oportunidade de frequentar as universidades públicas daquele reino muito, muito, muito distante. Os meios de comunicação e formadores de opinião, ávidos por novidades, logo descobriram na proposta de Dona Cota uma possibilidade de aumentarem seu lucro, fomentando a discussão em longos debates, reportagens e entrevistas. A discussão, que havia iniciado em uma vila no subúrbio de uma grande cidade daquele reino muito, muito, muito distante tornara-se um tema nacional, sendo discutido inclusive no parlamento do reino, onde os nobres, condes, duques e barões decidiam o futuro da nação. 

O governo daquele reino muito, muito, muito distante havia desenvolvido uma metodologia e técnica de manutenção “ad eternum” no poder baseada em um grande pacote de promessas com frases de efeito, inauguração de Planos e Placas, manipulação de dados e estatísticas, compra de adesões e distribuição de cargos e obras entre seus parceiros e apoiadores, locupletando-se com a renda e patrimônio do seu povo e devolvendo péssimas condições de saúde, habitação, aposentadoria e alimentação, precárias condições de transporte, higiene e qualidade de vida. E tudo isso com o apoio incondicional da maioria da população ingênua e crédula daquele reino muito, muito, muito distante. O segredo desta mágica os poderosos mantinham guardado a sete chaves no alto da maior torre do castelo da rainha de plantão, protegido por seus fiéis escudeiros. 

Com a influência decisiva dos poderosos locais, interessados em manter o “status quo”, Dona Cota não conseguiu eleger-se. Mas a semente estava lançada, e a discussão prosseguiu nas altas esferas onde as decisões eram tomadas. A mídia calou-se sobre o assunto, pressionada pelos seus financiadores, e foi direcionar suas baterias para novos temas. 

Mesmo assim, algumas universidades públicas passaram a adotar o sistema de reservar vagas para as minorias, conforme proposta lançada por Dona Cota. Questionado, o Supremo Tribunal daquele reino muito, muito, muito distante declarou que o sistema era legal. 

Para homenagear a precursora deste movimento, esta forma de acesso às universidades públicas passou a ser denominada com Sistema de Cotas Raciais, e tinha o intuito de democratizar a entrada no Ensino Superior das camadas menos favorecidas da população, e as minorias raciais como os negros e indígenas. 

O sonho tornara-se realidade. Seu Nívelbrando e Dona Ana Fabeta poderiam estufar o peito e afirmarem que seus filhos se tornariam doutores, engenheiros e professores. 

Como em todo conto de fadas, faltou acrescentar um bruxo mau, em nosso caso Edu Cação, um ferrenho opositor ao sistema de Cotas Raciais. Não que ele fosse contra a oportunidade de as minorias terem uma educação de qualidade e que permitissem a ascensão social, política e econômica desta população. Mas contra a forma impositiva e irracional de fazê-lo. O bruxo Edu acreditava que o sistema deveria ser melhorado a partir das escolas de base e junto aos pequenos alunos, para prepará-los para competir em igualdade de condições com os filhos dos poderosos. 

Blasfêmia! Bradaram os críticos. 

Mas Edu cação não parava por aí. Também acreditava que o número de profissionais de nível superior existentes no mercado de trabalho era muito maior que a real necessidade, em função de sua concentração nas grandes cidades daquele reino muito, muito, muito distante. Esta distorção gerava o desemprego para a maioria dos “doutores”, ou a distorção do desvio de função e atividade para os eventuais trabalhadores. 

Suprema heresia, o Bruxo Edu Cação propugnava que deveria ser incentivada a criação de cursos técnicos de formação de profissionais de nível médio para atender a demanda real da economia do reino, gerando emprego e renda para a população, e alavancando a economia em escala. 

Felizmente a voz destoante do Bruxo Edu Cação não ecoava nos círculos do poder. 

Com a implantação das cotas raciais nas Universidades um pequeno efeito colateral surgiu. Com a baixa escolaridade adquirida pelos cotistas raciais em anos de frequência em escolas públicas precárias, a qualidade de ensino nas Universidades Públicas começou a decair, pois os doutores, mestres e professores destas instituições dedicavam a maior parte de seu tempo complementando as falhas educacionais adquiridas desde a infância pelos alunos, restando pouco tempo para pesquisa e desenvolvimento de práticas de excelência nos bancos escolares universitários. 

Por outro lado, os filhos dos poderosos e abastados senhores daquele reino muito, muito, muito distante, constatando que a Universidade Pública já não representava todo o status e projeção que anteriormente tinham, em função da decadência institucional que estava sendo implementada, passaram a pressionar seus pais para buscarem alternativas de manutenção da situação anterior à implantação do Sistema de Cotas. Consultado o Reino, os governantes afirmaram que não poderiam alterar o sistema, pois isso geraria um desgaste político de proporções catastróficas, inclusive com a possibilidade de abalo e quiçá, perda do poder a que estavam acostumados. 

Explorando este nicho, as Universidades particulares, antes destinadas aos que não conseguiam ser aprovados na “batalha do vestibular”, começaram a investir na melhoria de qualidade do ensino, contratando os mestres e doutores insatisfeitos com a situação das Universidades Públicas, investindo em publicidade e instalações. Apercebendo-se desta mudança de rumo, os filhos dos poderosos começaram a migrar para o ensino particular, ampliando o número de vagas para o sistema de cotas nas universidades públicas, e enriquecendo as Universidades Particulares de todo o Reino. 

E assim viveram todos felizes para sempre, o governo que desobrigava-se do compromisso de investir nas universidade públicas e em um ensino de qualidade e agradava seus eleitores com títulos de “doutores” para seus filhos; o povo humilde que iludia-se com a esperança de que a vida iria melhorar com a capacitação de suas crianças; as Universidades Particulares que se tornaram cada vez mais ricas e poderosas; os filhos da classe média e alta continuaram estudando em escolas de qualidade... 

E o bruxo Edu Cação? Este morreu pobre, abandonado por seus amigos, solitário e desiludido, mas fiel à sua crença de que mudanças não podem ser impostas de cima para baixo, e que precisam começar na base para, em longo prazo, surtirem os efeitos desejados. 

FIM

Um comentário:

Francy e Carlos Guttierrez disse...

Estou quase achando que essereino muito, muito,muito distante,se chama BRASIL!!!!!!!!!!!!
Tudo está muito claro, masmuito bem construído....
abs,

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