A Festa de Brasilina
Filha bastarda de nobres europeus, Brasilina morava
em um condomínio na periferia. Sua casa, apesar de simples e sem luxo, era
espaçosa e supria precariamente as necessidades fundamentais da numerosa
família de Brasilina, pois as expressões “controle de natalidade” e
“planejamento familiar” pareciam não fazer parte do vocabulário de Brasilina e
seus vizinhos de condomínio. Desta
forma, tudo que Brasilina arrecadava era gasto para atender sua família, mas a
principal despesa de Brasilina era com alguns moradores de sua casa que
insistiam em se locupletar e malversar as receitas de Brasilina, enriquecendo
enquanto a maior parte da família de Brasilina penava para receber educação
digna, saúde e condições básicas de vida.
O condomínio onde Brasilina morava era habitado por
pessoas simples e humildes como ela, que falavam línguas estranhas e tinham hábitos,
colorações e feições muito diferentes, algumas muito mais miseráveis que ela e
outras emergentes como Brasilina. Também tinham os problemas e dificuldades de
nossa heroína, e viviam com resignação o destino para elas traçado.
Mas a nossa protagonista tinha um sonho, acalentado
desde há muito tempo. Em sua precária televisão, a cada quatro anos, assistia
maravilhada os desfiles e festividades promovidos pelos moradores do condomínio
de luxo que existia em um lugar muito distante e inacessível para pessoas como
ela, imaginava Brasilina. Eram jogos, músicas e desfiles promovidos em grandes
estádios repletos de pessoas que pagavam verdadeiras fortunas para frequentar,
em casas de luxo que a televisão mostrava. Quando desligava o aparelho,
Brasilina dormia imaginando a fantasia impraticável de um dia promover uma
festa com igual “glamour”. Espaço físico
ela tinha, e pessoas para ajudar na organização da festa também. O que faltava
para Brasilina eram as condições financeiras para preparar uma festividade
deste porte.
Arregaçando as mangas, Brasilina foi à luta.
Trabalhou muito, economizou o que conseguiu, pediu empréstimos e, explorando as
riquezas de sua terra e do seu povo, acreditou que havia conseguido.
Dirigiu-se aos organizadores da festa, que também
moravam neste condomínio de luxo e apresentou sua proposta para realizar o
evento. Depois de analisar rapidamente o seu projeto, os organizadores
explicaram a Brasilina que ela não reunia as condições básicas para cumprir o
encargo de obrigações que uma festa desta magnitude exigiria.
Voltando frustrada para casa, Brasilina não
acreditava que teria que desistir de seu sonho, e provar para seus pais
ausentes que ela também poderia ser nobre como eles haviam sido um dia.
A vida prosseguiu seu ritmo natural, e Brasilina
voltou às atividades diárias e cotidianas. Sempre envolvida com problemas e
dificuldades para resolver em sua casa e com sua família, reservava para os
seus momentos solitários e noturnos o acalentamento do sonho adormecido. De
quatro em quatro anos, Brasilina participava novamente dos festejos, como
muitos dos seus vizinhos, como simples convidados dos condôminos que habitavam
os luxuosos locais onde se realizavam os festivais, meros coadjuvantes do
brilho dos poderosos e ricos senhores habitantes deste paraíso.
Como a vida é feita de ciclos, em determinado
momento Brasilina e seus vizinhos de condomínio ficaram sabendo que muitos dos
antigamente tão ricos moradores do condomínio de luxo estavam passando por
dificuldades financeiras, e que os outrora investidores e financiadores deles
estariam interessados em promover o desenvolvimento e progresso dos vizinhos e
de Brasilina. Com muitos produtos acumulados ao longo dos anos, com uma terra
fértil e produtiva, uma família numerosa e trabalhadora, grandes áreas a serem
desenvolvidas em sua casa, Brasilina naturalmente seria uma potencial candidata
para receber os investimentos e recursos destes ricos investidores.
A vida de Brasilina começou a mudar radicalmente.
Novos prédios foram construídos em seu terreno, as condições básicas de vida
começaram a melhorar para sua gente, e Brasilina começou a acumular uma
poupança que nunca havia conseguido. De tomadora de empréstimos para pagar suas
contas, agora Brasilina era bajulada pelos poderosos para emprestar recursos e
perdoar dívidas. De origem humilde, Brasilina estava maravilhada com tanta
atenção e consideração de seus antigos ídolos, que agora a tratavam como igual,
convidando-a para importantes reuniões de trabalho em seus condomínios,
perguntando sua opinião sobre os grandes temas universais e a tratando como se
um deles fosse.
Mas nem tudo era perfeito no paraíso de Brasilina,
pois aqueles que já se apropriavam dos parcos recursos dela, com esta enxurrada
de investimentos multiplicaram seus conchavos e negociatas, cobrando comissões
de tudo e de todos, sangrando o orçamento de Brasilina para a saúde, educação e
alimentação da família de Brasilina, pois depois de todos estes desvios, poucos
recursos sobravam para atender as necessidades básicas de seu povo.
Com todo progresso e desenvolvimento que nossa
protagonista havia alcançado, estava na hora dela realizar sua antiga utopia,
agora possivelmente realizável. O empurrãozinho que faltava foi dado pelos
próprios organizadores da festa, ao convidarem seu vizinho do condomínio
africano para promover os festejos.
Animando-se com o cenário positivo que havia se
formado, Brasilina reuniu os parentes mais próximos para organizar o “book” da
sua candidatura. Com um grande número de promessas e compromissos, um filme
apresentando as belezas naturais de sua casa e uma comitiva com os
representantes mais importantes da família, Brasilina dirigiu-se para a sede
dos organizadores do Festival quadrianual. Outros concorrentes dos condomínios
de luxo apresentaram propostas, mas a de Brasilina foi a vencedora.
O sonho realizara-se. Brasilina poderia abandonar
sua televisão e se tornar a protagonista da festa.
No retorno a casa, as comemorações foram intensas.
Fogos de artifício, carnaval, pagode com cerveja, bandeiras e ufanismo, cada
morador da casa de Brasilina comemorou do seu jeito a grande conquista da nossa
heroína.
Passados os folguedos, Brasilina deu-se conta de
que era hora de começar a planejar a festa, pois apesar dos oito anos
concedidos pelo comitê organizador, o caderno de encargos era muito rigoroso e
muito havia por fazer. Mas por onde começar? Reunida com seus parentes e amigos
mais próximos, ficou decidido que seriam criadas comissões para organizar e
disciplinar o andamento dos serviços necessários para preparar a casa de
Brasilina para a FESTA.
Foram criados inúmeros cargos e empregos foram
distribuídos entre os colaboradores e amigos de Brasilina, muitas estratégias
preparadas, intermináveis reuniões, planos, projetos e intenções. No papel tudo
estava perfeito, os valores necessários para execução das obras foi
disponibilizado, o orçamento elaborado, não havia nada sido deixado de ser
considerado para o atendimento total das especificações e exigências do comitê
organizador.
Com todo o foco voltado para a festa, Brasilina
acabou negligenciando um pouco os cuidados com a sua casa, suas finanças e com
o seu povo, ainda muito carente no atendimento básico de suas necessidades. Sua
saúde piorava, o atendimento era precário, suas crianças não tinham escola e
boa alimentação, os velhinhos não tinham atendimento prioritário e cuidados que
a velhice exigiria, seu povo operário trabalhava em péssimas condições, a
higiene e habitabilidade de suas casas deficientes, poucos tinham muito e cada
vez mais muitos tinham muito pouco.
Aos que ousavam protestar em relação ao que estava
ocorrendo, Brasilina argumentava dizendo que depois da FESTA tudo iria
melhorar, pois o progresso e desenvolvimento gerado por ela se irradiaria por
todo o território, atingindo e beneficiando todo o povo humilde da casa de
Brasilina.
Passado algum tempo, o comitê organizador veio
visitar Brasilina para verificar como estavam os preparativos para a festa.
Foram muito bem recebidos na casa de Brasilina, comeram e beberam do melhor,
apresentações foram feitas para distrair os convivas, bem no estilo da família
de Brasilina. Terminados os banquetes, os representantes quiseram verificar
como estava o andamento das obras e preparativos. Gráficos, projeções e
simulações foram apresentadas, mas as obras físicas ou não haviam iniciado ou
estavam muito atrasadas, argumentaram os fiscais do comitê organizador. Novas
promessas e prazos foram apresentados, e os representantes prometeram voltar
com as resoluções do comitê em função do relatório que iriam apresentar.
Brasilina convocou uma reunião emergencial com seus
assessores para que providências fossem tomadas e responsabilidades fossem
apuradas em relação ao atraso do cronograma. Depois de concluídas a avaliações
e projeções, uma decisão foi adotada:
-Precisamos revisar os orçamentos, disponibilizar
mais verbas, criar novos cargos e funções e contingenciar as despesas de
custeio da família de Brasilina!
Com o cinto cada vez mais apertado, o povo de
Brasilina não sabia mais o que fazer para economizar para que a festa não
corresse o risco de ser cancelada. Sem caixa para bancar as novas despesas,
Brasilina novamente precisou recorrer a empréstimos, como fazia em grande
quantidade em um passado já remoto. Garantias foram dadas, receitas futuras
comprometidas, promessas de arrocho e cumprimento de metas assinadas, tudo para
garantir que Brasilina não teria que passar pelo vexame de cancelar a FESTA, e
tornar-se piada dos seus vizinhos de condomínio, invejosos do progresso e
desenvolvimento de nossa protagonista, e sedentos por assistir a desgraça e
humilhação de Brasilina.
Enquanto isso, no comitê organizador da festa,
reuniões e monitoramentos eram feitos, e iniciava-se a gestão de um plano “B”
para o caso de Brasilina não cumprir o compromisso assumido, fato que não
causaria espanto ou surpresa, visto o histórico familiar da nossa protagonista
e grande número de promessas e resoluções não cumpridas ao longo de sua vida.
Procurava-se um local alternativo para realização
da festa, uma exigência dos patrocinadores e investidores do evento, que não
pretendiam comprometer sua imagem e os altos recursos alavancados para
realização do evento em função da imprevidência de uma moradora de um condômino
de terceiro mundo.
Por que, salvo ledo engano, a roda da fortuna deve
continuar a girar, e “business is business” diria o mago capitalista de
plantão.
E na terra de nossa heroína, a decisão já foi tomada.
Se nada der certo, vamos para o bar tomar umas geladas, cantar um pagode e planejar o
carnaval do ano que vem com as sobras da “Festa de Brasilina” que não aconteceu. E mais uma vez ecoaria pelo mundo o bordão atribuído ao antigo presidente francês: “Le Brésil n'est pas um pays sérieux”.
Com o prazo de validade de minha bola de cristal
vencido, esquecida na assistência técnica sem previsão para o conserto, a
história da “Festa de Brasilina” ficaria sem um final plausível.
Para evitar este lapso e frustração geral, vamos
discorrer um pouco sobre o apaixonante tema que envolve futebol, poder,
responsabilidade e orgulho nacional.
Como premissa básica gostaria de declarar que já
fui apaixonado pelo esporte bretão em minha infância e adolescência, torcedor
de obrigar a mãe a contratar uma costureira para produzir uma mega bandeira
tricolor, para junto com outros fanáticos, “até
a pé nós iremos para o que der e vier”... (adivinhem meu time). Respeito os
que mantém esta paixão ao longo de suas vidas, mas ao longo da minha história
fui trocando a camiseta do meu clube por roupas da moda, o estádio por
danceterias, bares e shows, a paixão por onze marmanjos correndo atrás da bola
pela paixão da mulher amada.
É justo reconhecer que as obras de infraestrutura e
melhorias em geral que estão sendo produzidas em nosso país são extremamente
necessárias e já encontram-se defasadas no tempo, e que os investimentos
ficarão como legado para o nosso povo. Mas quantas outras obras de vulto já
foram realizadas em nosso Brasil e foram desvirtuadas, sucateadas e
superfaturadas. Um país que iniciou sua vida autônoma tendo sua independência
reconhecida por Portugal a partir do pagamento de uma indenização que foi
financiada pela Inglaterra, cobrada com muitos juros durante décadas, apresenta
um retrospecto não muito recomendável para gerenciamento de obras e capital.
Aos que se opõem ao contingenciamento de tanto
dinheiro, esforço físico e planejamento para financiar e promover uma atividade
fútil e improdutiva, enquanto há tanto por fazer por nosso povo e nossa
cidadania, por nossa educação e saúde, por nossas crianças e nossos velhinhos,
por nossa autoestima e nossa cultura, também dou razão. Todo este potencial
seria melhor empregado no desenvolvimento humano de nossa população, pois de
que nos adianta termos índices de economias de primeiro mundo se grande parte
de nossa população ainda frequenta os porões do terceiro.
Reconheço que atividades como a música e os
esportes em geral são um oasis de luxo e fortuna no deserto da humanidade, que
os artistas “top” vivem uma realidade diferente de nós, os humanos comuns e que,
em economias estabilizadas, existem diferenças entre os que ganham mais e os
que recebem menos.
Mas em países “emergentes” como o nosso, esta
diferença encontra-se sublimada, e o abismo entre os dois lados tende a aumentar
cada vez mais com o desenvolvimento técnico e científico, associado a
concentração e acumulação de capital pelos poderosos.
Fruto de uma sociedade que coloca o material/ter acima
do espiritual/ser, a humanidade desconsidera atividades que dão significância à
vida e ao desenvolvimento cultural, pessoal e sustentável da Terra, em favor de
atividades que multiplicam as diferenças raciais, de credos e de classes,
incentivando o consumismo desenfreado sem se preocupar com nossa sobrevivência,
extinguindo nossas reservas naturais de fauna e flora, transformando nosso
planeta em uma grande cloaca de dejetos descartáveis. Populações inteiras são dizimadas pela
guerra, pela fome, pela intolerância religiosa ou por doenças facilmente
curáveis, enquanto os dirigentes mundiais, as grandes corporações e os
poderosos reúnem-se em hotéis de luxo para definir os destinos dos homens. Com
tanta riqueza e progresso, fariam melhor se pensassem que os desfavorecidos foram
gerados da mesma forma, e se por inúmeras razões não alcançaram o sucesso e
projeção destes, tem o direito a receber o mesmo tratamento e condições que os
afortunados tiveram, irmãos no universo, igualados no nascimento e na morte.
Para concluir, se fosse possível resumir meu
pensamento em uma só frase, ela seria: "Recém
plantamos a semente que produzirá o pão e já queremos frequentar o circo".
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