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quinta-feira, 11 de outubro de 2012

A Festa de Brasilina



A Festa de Brasilina

Filha bastarda de nobres europeus, Brasilina morava em um condomínio na periferia. Sua casa, apesar de simples e sem luxo, era espaçosa e supria precariamente as necessidades fundamentais da numerosa família de Brasilina, pois as expressões “controle de natalidade” e “planejamento familiar” pareciam não fazer parte do vocabulário de Brasilina e seus vizinhos de condomínio.  Desta forma, tudo que Brasilina arrecadava era gasto para atender sua família, mas a principal despesa de Brasilina era com alguns moradores de sua casa que insistiam em se locupletar e malversar as receitas de Brasilina, enriquecendo enquanto a maior parte da família de Brasilina penava para receber educação digna, saúde e condições básicas de vida.

O condomínio onde Brasilina morava era habitado por pessoas simples e humildes como ela, que falavam línguas estranhas e tinham hábitos, colorações e feições muito diferentes, algumas muito mais miseráveis que ela e outras emergentes como Brasilina. Também tinham os problemas e dificuldades de nossa heroína, e viviam com resignação o destino para elas traçado.

Mas a nossa protagonista tinha um sonho, acalentado desde há muito tempo. Em sua precária televisão, a cada quatro anos, assistia maravilhada os desfiles e festividades promovidos pelos moradores do condomínio de luxo que existia em um lugar muito distante e inacessível para pessoas como ela, imaginava Brasilina. Eram jogos, músicas e desfiles promovidos em grandes estádios repletos de pessoas que pagavam verdadeiras fortunas para frequentar, em casas de luxo que a televisão mostrava. Quando desligava o aparelho, Brasilina dormia imaginando a fantasia impraticável de um dia promover uma festa com igual “glamour”.  Espaço físico ela tinha, e pessoas para ajudar na organização da festa também. O que faltava para Brasilina eram as condições financeiras para preparar uma festividade deste porte.

Arregaçando as mangas, Brasilina foi à luta. Trabalhou muito, economizou o que conseguiu, pediu empréstimos e, explorando as riquezas de sua terra e do seu povo, acreditou que havia conseguido.
Dirigiu-se aos organizadores da festa, que também moravam neste condomínio de luxo e apresentou sua proposta para realizar o evento. Depois de analisar rapidamente o seu projeto, os organizadores explicaram a Brasilina que ela não reunia as condições básicas para cumprir o encargo de obrigações que uma festa desta magnitude exigiria.

Voltando frustrada para casa, Brasilina não acreditava que teria que desistir de seu sonho, e provar para seus pais ausentes que ela também poderia ser nobre como eles haviam sido um dia.
A vida prosseguiu seu ritmo natural, e Brasilina voltou às atividades diárias e cotidianas. Sempre envolvida com problemas e dificuldades para resolver em sua casa e com sua família, reservava para os seus momentos solitários e noturnos o acalentamento do sonho adormecido. De quatro em quatro anos, Brasilina participava novamente dos festejos, como muitos dos seus vizinhos, como simples convidados dos condôminos que habitavam os luxuosos locais onde se realizavam os festivais, meros coadjuvantes do brilho dos poderosos e ricos senhores habitantes deste paraíso.

Como a vida é feita de ciclos, em determinado momento Brasilina e seus vizinhos de condomínio ficaram sabendo que muitos dos antigamente tão ricos moradores do condomínio de luxo estavam passando por dificuldades financeiras, e que os outrora investidores e financiadores deles estariam interessados em promover o desenvolvimento e progresso dos vizinhos e de Brasilina. Com muitos produtos acumulados ao longo dos anos, com uma terra fértil e produtiva, uma família numerosa e trabalhadora, grandes áreas a serem desenvolvidas em sua casa, Brasilina naturalmente seria uma potencial candidata para receber os investimentos e recursos destes ricos investidores.

A vida de Brasilina começou a mudar radicalmente. Novos prédios foram construídos em seu terreno, as condições básicas de vida começaram a melhorar para sua gente, e Brasilina começou a acumular uma poupança que nunca havia conseguido. De tomadora de empréstimos para pagar suas contas, agora Brasilina era bajulada pelos poderosos para emprestar recursos e perdoar dívidas. De origem humilde, Brasilina estava maravilhada com tanta atenção e consideração de seus antigos ídolos, que agora a tratavam como igual, convidando-a para importantes reuniões de trabalho em seus condomínios, perguntando sua opinião sobre os grandes temas universais e a tratando como se um deles fosse.
Mas nem tudo era perfeito no paraíso de Brasilina, pois aqueles que já se apropriavam dos parcos recursos dela, com esta enxurrada de investimentos multiplicaram seus conchavos e negociatas, cobrando comissões de tudo e de todos, sangrando o orçamento de Brasilina para a saúde, educação e alimentação da família de Brasilina, pois depois de todos estes desvios, poucos recursos sobravam para atender as necessidades básicas de seu povo.

Com todo progresso e desenvolvimento que nossa protagonista havia alcançado, estava na hora dela realizar sua antiga utopia, agora possivelmente realizável. O empurrãozinho que faltava foi dado pelos próprios organizadores da festa, ao convidarem seu vizinho do condomínio africano para promover os festejos.
Animando-se com o cenário positivo que havia se formado, Brasilina reuniu os parentes mais próximos para organizar o “book” da sua candidatura. Com um grande número de promessas e compromissos, um filme apresentando as belezas naturais de sua casa e uma comitiva com os representantes mais importantes da família, Brasilina dirigiu-se para a sede dos organizadores do Festival quadrianual. Outros concorrentes dos condomínios de luxo apresentaram propostas, mas a de Brasilina foi a vencedora.

O sonho realizara-se. Brasilina poderia abandonar sua televisão e se tornar a protagonista da festa.
No retorno a casa, as comemorações foram intensas. Fogos de artifício, carnaval, pagode com cerveja, bandeiras e ufanismo, cada morador da casa de Brasilina comemorou do seu jeito a grande conquista da nossa heroína.
Passados os folguedos, Brasilina deu-se conta de que era hora de começar a planejar a festa, pois apesar dos oito anos concedidos pelo comitê organizador, o caderno de encargos era muito rigoroso e muito havia por fazer. Mas por onde começar? Reunida com seus parentes e amigos mais próximos, ficou decidido que seriam criadas comissões para organizar e disciplinar o andamento dos serviços necessários para preparar a casa de Brasilina para a FESTA.

Foram criados inúmeros cargos e empregos foram distribuídos entre os colaboradores e amigos de Brasilina, muitas estratégias preparadas, intermináveis reuniões, planos, projetos e intenções. No papel tudo estava perfeito, os valores necessários para execução das obras foi disponibilizado, o orçamento elaborado, não havia nada sido deixado de ser considerado para o atendimento total das especificações e exigências do comitê organizador.
Com todo o foco voltado para a festa, Brasilina acabou negligenciando um pouco os cuidados com a sua casa, suas finanças e com o seu povo, ainda muito carente no atendimento básico de suas necessidades. Sua saúde piorava, o atendimento era precário, suas crianças não tinham escola e boa alimentação, os velhinhos não tinham atendimento prioritário e cuidados que a velhice exigiria, seu povo operário trabalhava em péssimas condições, a higiene e habitabilidade de suas casas deficientes, poucos tinham muito e cada vez mais muitos tinham muito pouco.
Aos que ousavam protestar em relação ao que estava ocorrendo, Brasilina argumentava dizendo que depois da FESTA tudo iria melhorar, pois o progresso e desenvolvimento gerado por ela se irradiaria por todo o território, atingindo e beneficiando todo o povo humilde da casa de Brasilina.

Passado algum tempo, o comitê organizador veio visitar Brasilina para verificar como estavam os preparativos para a festa. Foram muito bem recebidos na casa de Brasilina, comeram e beberam do melhor, apresentações foram feitas para distrair os convivas, bem no estilo da família de Brasilina. Terminados os banquetes, os representantes quiseram verificar como estava o andamento das obras e preparativos. Gráficos, projeções e simulações foram apresentadas, mas as obras físicas ou não haviam iniciado ou estavam muito atrasadas, argumentaram os fiscais do comitê organizador. Novas promessas e prazos foram apresentados, e os representantes prometeram voltar com as resoluções do comitê em função do relatório que iriam apresentar.

Brasilina convocou uma reunião emergencial com seus assessores para que providências fossem tomadas e responsabilidades fossem apuradas em relação ao atraso do cronograma. Depois de concluídas a avaliações e projeções, uma decisão foi adotada:
-Precisamos revisar os orçamentos, disponibilizar mais verbas, criar novos cargos e funções e contingenciar as despesas de custeio da família de Brasilina!
Com o cinto cada vez mais apertado, o povo de Brasilina não sabia mais o que fazer para economizar para que a festa não corresse o risco de ser cancelada. Sem caixa para bancar as novas despesas, Brasilina novamente precisou recorrer a empréstimos, como fazia em grande quantidade em um passado já remoto. Garantias foram dadas, receitas futuras comprometidas, promessas de arrocho e cumprimento de metas assinadas, tudo para garantir que Brasilina não teria que passar pelo vexame de cancelar a FESTA, e tornar-se piada dos seus vizinhos de condomínio, invejosos do progresso e desenvolvimento de nossa protagonista, e sedentos por assistir a desgraça e humilhação de Brasilina.

Enquanto isso, no comitê organizador da festa, reuniões e monitoramentos eram feitos, e iniciava-se a gestão de um plano “B” para o caso de Brasilina não cumprir o compromisso assumido, fato que não causaria espanto ou surpresa, visto o histórico familiar da nossa protagonista e grande número de promessas e resoluções não cumpridas ao longo de sua vida.
Procurava-se um local alternativo para realização da festa, uma exigência dos patrocinadores e investidores do evento, que não pretendiam comprometer sua imagem e os altos recursos alavancados para realização do evento em função da imprevidência de uma moradora de um condômino de terceiro mundo.
Por que, salvo ledo engano, a roda da fortuna deve continuar a girar, e “business is business” diria o mago capitalista de plantão.

E na terra de nossa heroína, a decisão já foi tomada. Se nada der certo, vamos para o bar tomar umas geladas, cantar um pagode e planejar o carnaval do ano que vem com as sobras da “Festa de Brasilina” que não aconteceu. E mais uma vez ecoaria pelo mundo o bordão atribuído ao antigo presidente francês: “Le Brésil n'est pas um pays sérieux”.  

Com o prazo de validade de minha bola de cristal vencido, esquecida na assistência técnica sem previsão para o conserto, a história da “Festa de Brasilina” ficaria sem um final plausível.
Para evitar este lapso e frustração geral, vamos discorrer um pouco sobre o apaixonante tema que envolve futebol, poder, responsabilidade e orgulho nacional.
Como premissa básica gostaria de declarar que já fui apaixonado pelo esporte bretão em minha infância e adolescência, torcedor de obrigar a mãe a contratar uma costureira para produzir uma mega bandeira tricolor, para junto com outros fanáticos, “até a pé nós iremos para o que der e vier”... (adivinhem meu time). Respeito os que mantém esta paixão ao longo de suas vidas, mas ao longo da minha história fui trocando a camiseta do meu clube por roupas da moda, o estádio por danceterias, bares e shows, a paixão por onze marmanjos correndo atrás da bola pela paixão da mulher amada.

É justo reconhecer que as obras de infraestrutura e melhorias em geral que estão sendo produzidas em nosso país são extremamente necessárias e já encontram-se defasadas no tempo, e que os investimentos ficarão como legado para o nosso povo. Mas quantas outras obras de vulto já foram realizadas em nosso Brasil e foram desvirtuadas, sucateadas e superfaturadas. Um país que iniciou sua vida autônoma tendo sua independência reconhecida por Portugal a partir do pagamento de uma indenização que foi financiada pela Inglaterra, cobrada com muitos juros durante décadas, apresenta um retrospecto não muito recomendável para gerenciamento de obras e capital.

Aos que se opõem ao contingenciamento de tanto dinheiro, esforço físico e planejamento para financiar e promover uma atividade fútil e improdutiva, enquanto há tanto por fazer por nosso povo e nossa cidadania, por nossa educação e saúde, por nossas crianças e nossos velhinhos, por nossa autoestima e nossa cultura, também dou razão. Todo este potencial seria melhor empregado no desenvolvimento humano de nossa população, pois de que nos adianta termos índices de economias de primeiro mundo se grande parte de nossa população ainda frequenta os porões do terceiro.

Reconheço que atividades como a música e os esportes em geral são um oasis de luxo e fortuna no deserto da humanidade, que os artistas “top” vivem uma realidade diferente de nós, os humanos comuns e que, em economias estabilizadas, existem diferenças entre os que ganham mais e os que recebem menos.
Mas em países “emergentes” como o nosso, esta diferença encontra-se sublimada, e o abismo entre os dois lados tende a aumentar cada vez mais com o desenvolvimento técnico e científico, associado a concentração e acumulação de capital pelos poderosos.

Fruto de uma sociedade que coloca o material/ter acima do espiritual/ser, a humanidade desconsidera atividades que dão significância à vida e ao desenvolvimento cultural, pessoal e sustentável da Terra, em favor de atividades que multiplicam as diferenças raciais, de credos e de classes, incentivando o consumismo desenfreado sem se preocupar com nossa sobrevivência, extinguindo nossas reservas naturais de fauna e flora, transformando nosso planeta em uma grande cloaca de dejetos descartáveis.  Populações inteiras são dizimadas pela guerra, pela fome, pela intolerância religiosa ou por doenças facilmente curáveis, enquanto os dirigentes mundiais, as grandes corporações e os poderosos reúnem-se em hotéis de luxo para definir os destinos dos homens. Com tanta riqueza e progresso, fariam melhor se pensassem que os desfavorecidos foram gerados da mesma forma, e se por inúmeras razões não alcançaram o sucesso e projeção destes, tem o direito a receber o mesmo tratamento e condições que os afortunados tiveram, irmãos no universo, igualados no nascimento e na morte.

Para concluir, se fosse possível resumir meu pensamento em uma só frase, ela seria: "Recém plantamos a semente que produzirá o pão e já queremos frequentar o circo".

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