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sexta-feira, 3 de fevereiro de 2012

desCASO de desAMOR

Amanhece. Nossa, que noite! Tudo esteve perfeito. O vinho na temperatura, levemente gelado, a tábua de frios, as frutas e o licor, a música escolhida a dedo, o nosso quarto a meia-luz, as velas e o incenso, enfim, tudo. E depois, aquela tua roupa provocante, os cremes aromáticos, as massagens, inicialmente teraupeticas, o clima esquentando, afagos, abraços, beijos, carícias e depois, os dois fazendo coisas que até agora não acredito serem possíveis, parecíamos dois malabaristas em um picadeiro mágico, rumo as estrelas e, finalmente, o êxtase final, aquela falta de ar, pareço sufocar, teu olhar de paixão, não imaginava ser possível tanto deleite. E depois o relaxamento, aquele descanso do prazer absoluto e realizado, o sono e o suor misturados, meus cheiros e teus sabores, aquele calor que queima por dentro e, enfim, rumo ao mundo dos devaneios e de Morfeu, onde tudo acontece de uma forma irreal e feiticeira. E agora, depois de algumas horas de repouso, espreguiço-me e virando-me, encontro seu corpo repousado. Estranho, um vazio frio e distante, uma ausência de ti, onde estarão as dobras e amassões no travesseiro e nas cobertas. Deves ter te levantado e estarás preparando nosso café, aquelas frutas fresquinhas, pães caseiros, bolos, geléias e doces, bolachinhas crocantes e levemente salgadas, suco de maracujá e meu café, preto e forte, levemente tostado, sinto-me em um café colonial em Gramado. Levanto-me e, com muito esforço, encontro meu pijama junto a poltrona. A tv ficou ligada e, neste momento, uma menina apresenta um programa onde crianças falsamente felizes brincam fingidamente como se estivessem se divertindo. Desligo o aparelho, muita falsidade para o meu estômago vazio e minha bexiga cheia. Encaminho-me para o banheiro, deveria ter comprado um apê com suite e closet, mas a grana não deu, quem sabe quando fechar aquele contrato. No banheiro, constato que a bagunça é geral, devíamos contratar uma diarista, e não aquela faxineira, como é mesmo o nome, sei lá, que passa o dia escutando aquelas rádios evangélicas, aleluia, e batendo palmas desenfreadamente. Passo pela sala, as cortinas estão fechadas, uma pilha de jornais e revistas espalhadas, latinhas de cerveja e restos de comida diversos sobre a mesa de centro, foi presente da minha sogra, se ela enxergar aquelas manchas, vou ouvir durante um mês aquela cantinela, "filha tu devias ter escolhido melhor, tinhas tantos pretendentes, te lembra daquele dentucinho, tão simpático, está muito bem, é gerente daquela loja grande de departamentos que se instalou recentemente, como é mesmo, ai, um nome de cidade, sei lá ".
Aproximando-me da cozinha quase tropeço em uma pilha de correspondência no chão junto ao hall de entrada. Abaixo-me com dificuldade e arremato os papéis, pareço uma daquelas meninas de micro-saia, sorteando um felizardo que ganhara alguma inutilidade sem serventia alguma. Compre isto, pague aquilo, leia, preencha, devolva, docs com vencimentos variados, a maior parte em atraso, ameaças diversas, protestos, Serasas, CPC, enfim muita literatura inútil. Ou meu olfato está desregulado, ou não estou sentindo aquele inebriante aroma de um café passado na hora, aquele prenúncio olfativo que promete uma sensação maravilhosa de degustar em uma caneca de estimação o líquido fumegante e forte de um café. Entro na cozinha com a minha cara preparada de falsa surpresa e, surpresa!...... nada. Pãezinhos e bolos sequestrados, geléias e doces desaparecidos, sucos e frutas defenestrados. O que encontro parece-me resultado de mais um ataque da grande nação americana a algum país terrorista. Sobre o tampo de granito da pia jazem uma profusão de alimentos em estado perecível, restos que parecem ter sido mutilados por alguma granada de impacto, atingindo, inclusive, os florais arranjos da cerâmica e sua barra decorada em um composê de estilos e texturas, conforme definição da caríssima arquiteta de interiores. Sobre a mesa em estilo country, mais vítimas do ata-que, numa bizarra natureza-morta e putrefata. Doce engano olfativo, sai o aroma de café fresquinho e entra o fedor fétido e azedo de restos em decomposição. Qual Indiana Jones de supermercado esgueiro-me entre os destroços em direção ao Templo da Perdição, que mesmo não sendo uma Brastemp (olha o merchandising), promete recompensar-me por todos os percalços enfrentados. Apesar da multidão de imãs de geladeira, teleisso e teleaquilo, finalmente consigo abrir a geladeira e, hecatombe, o desastre final. O cenário que se me apresenta é impossível de reconstituir, portanto não perderei o meu precioso tempo tentando. Insatisfeito meu apetite matinal, dirijo meu pensamento para o grande mistério que envolve o meu ser.
Aterrorizo-me. Com tantos delitos anunciados, sequestros, roubos, assaltos, teremos sido vítimas da delinqüência presente em nossa sociedade? Onde estará meu amor?
Um filme projeta-se em minha mente. Se-pa-ra-ção! O casal, antes dois em um, amor eterno, almas gêmeas, as duas metades da maçã, juras e olhares, beijos e suores, brigas homéricas e reconciliações ainda maiores, jantares, boates e teatro, leituras compartilhadas, as músicas que cada momento especial representavam, sonolências e insônias, despertares, feriados e trabalhos, filhos, gatos, pássaros, peixes, tartarugas e cachorros, sonhos e pesadelos, anoitecer na serra, amanhecer na praia, tardes em museus, dividir rugas, cabelos brancos e gordurinhas, amadurecer envelhecendo, eternizando a mais bela história de amor, tudo ruindo na mesmice dos dias intermináveis, previsíveis e monótonos, nas pequenas e grandes decepções, nas mentiras não confessadas e nas verdades não divididas, nos silêncios, nos gritos e nos sussuros, nas desculpas não formuladas e não concedidas, por não contar até mil, pelos esquecimentos, pelas lembranças, pelos ódios e pelos amores, pela indiferença programada e pela insistência demasiada, por mim e por ti, pelos amigos e pelos parentes, ilustres desconhecidos e ignóbeis conhecidos, pela inveja, ciúmes, destemperança, fastio, excessos, faltas, presenças, por discutir a relação, por descuidar a relação, por não escutar a relação, por valorizar as pequenas diferenças, desprezar as grandes semelhanças, até o desfecho final, a separação dos quadros, livros, objetos, roupas, a dor física da mutilação dos membros, regressar a situação anterior, não mais dois em um, separação das almas e corpos gêmeos, não mais sentir teus cheiros tão familiares, virar a cabeça na cama e encontrar teu travesseiro vazio, sem os fios dos teus cabelos, não mais duas escovas de dentes, dois pratos na mesa, teus objetos de prazer não mais espalhados pela casa, na mesa de cabeceira, no sofá da sala ou no banheiro, não mais programar passeios e visitas não efetivados, não mais dividir noticiários, músicas, livros ou revistas, o fim.
Ela volta, volta? Volta!
Ela volta, volta?
Ela volta,
Ela...


Paulo Bettanin

4 comentários:

Francy disse...

Crônicas??? princípio do livro?? se for, bravo, escreves muito bem.. aliás já havia notado pelos outros escritos... só temos que esperar a publicação...
Parabésn pelo texto muito bem escrito..
abs,

Eva disse...

Que lindo esse texto, naveguei por ele e adorei, muito lindo! Vou participar sim, envio um texto, tenho que preparar, bacana essa tua iniciativa, parabéns pelo talento também! abraços, bom final de semana!

jusseli rocha disse...

Amigo Paulo,li com tanta gana que lerei outra vez, agora saboreando e, com certeza, descobrindo mais e mais..Abraços..

chica disse...

Maravilha,Paulo.Escreves muito bem e nos prendes...abraços,chica

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