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terça-feira, 17 de abril de 2012

Cronica - Natureza morta


Anoitece. No silêncio do meu quarto torna-se impossível determinar em que horas estamos. O tempo parece escorrer entre as golfadas do ar-condicionado que, apesar dos esforços, não consegue aplacar o frio que percorre o meu ser. Não lembro quanto dormi, quando comi, se fui ao banheiro, se estamos em janeiro. A sonolência em que me encontro amortece meus sentidos. Observando melhor, reconheço alguns objetos que não lembro serem meus. Agora constato que onde repouso parece-me uma fria cama de hospital, com seus cromados e comandos, alvejados lençóis, a indefectível televisão, reproduzindo via satélite uma vida que não é minha, não é sua nem de ninguém, passado e futuro, relações improváveis, casamentos e traições, pérfidas pessoas, anjos angelicais, riquezas de um pobre país podre, o poder e o amor, enfim, nada. À esquerda um senhor barbudo pregado na parede pregado na cruz observa tudo com um olhar de quem tudo entende. Sendo assim, explique-me o que faço aqui deitado, sem poder movimentar-me. Não sinto meus membros, pareço não me pertencer, estranha sensação, não me reconhecer. Avisto em uma mesa lateral, um arranjo com flores, não vislumbro de que espécie serão, naturais?

Ao lado, algumas fotografias aprisionadas em molduras de madeira, com pessoas que não provocam em mim recordações. Uma cesta com frutas, natureza-morta em tons pastéis, completa o cenário. De alguma forma, devo representar algum papel na vida de alguém. A curiosidade me conduz ao labirinto das hipóteses improváveis. Terei esposa, filhos, cachorro gato e passarinho? Uma sogra com explicações para todos os mistérios desta e de qualquer outra vida? Um sogro suarento que passa os domingos assistindo programas de auditório e bebericando cervejas e consumindo salgadinhos? Cunhados, genros, sobrinhas, primos e agregados, todos liquidificados em festas e comemorações, bebidas e comidas, efusivos cumprimentos que nada acrescentam, presentes vazios de significados.

Preciso me concentrar na realidade, divagações não solucionarão o mistério existencial em que me encontro. Agora as sombras projetadas nas paredes e no teto criam fantásticas figuras, mitológicas criaturas, uma dança barroca de difícil absorção. Estranho não escutar ruídos, serão estas imagens produzidas por árvores ou pelos olhos de néon dos veículos que transportam seres humanos transformados em poderosas criaturas, senhores da vida e da morte, em suas bigas metálicas, preparados para as batalhas.

Concentração. Alguns fragmentos percorrem a tela escura da minha memória. Um menino, cabelos curtos, triciclo vermelho, serei eu, em uma rua sem nome, em uma cidade sem rosto. Persiana cerrada, a soluçar encontro, novamente este menino.
Um nome, um endereço, uma pista a seguir. As gavetinhas de nossas lembranças, tão pequenas e tão repletas de informações, impossíveis de serem exploradas, qual será a senha, nem imagino.

Preciso um roteiro, organizar pensamentos, vasculhar o universo, encontrar a resposta. Pensando bem, esta resposta pode levar-me a alçapões, porões e subterrâneos que me amedontrariam só ao imaginá-los, dilacerando minhas entranhas, abduzindo minha vontade, subtraindo minhas energias, destruindo meu caráter, descalcificando minha personalidade, reduzindo-me, enfim, ao mais baixo nível de humanidade, o ser humano.

Sanidade! Voltarei ao inventário da prisão onde me encontro. As paredes deste cubo tridimensional parecem-me, na penumbra em que estou, brancas ou levemente acinzentadas, com nuances de claros e escuros que poderiam figurar naqueles catálogos de milhares de tons oferecidos nas lojas, prometendo a felicidade eterna em diferentes tonalidades e matizes. O piso, esforço-me a visualizá-lo, prejudicado pela minha aparente rigidez, parece-me um espelho d’água, a rebater em suas faces, tudo e a todos. Encontrei junto à quina de uma das paredes, uma operosa aranha, que caprichosamente tece sua teia, preparando o jantar que se avizinha. Não sinto fome, e terei que recusar sua oferta de convite ao banquete. Imagino que sua futura presa, poderá sentir-se como me sinto agora, prisioneiro, sem possibilidade de evadir-me, com o agravante de nem conseguir lutar pela minha sobrevivência.

As pessoas. Onde estariam os funcionários, médicos, enfermeiros, auxiliares, o alto-falante, toda a estrutura que pulsa em um hospital? Terá ocorrido uma evacuação em massa, todos fugindo apavorados, deixando para trás roupas, pertences, carros, parentes e, no final desta interminável lista, eu. Que grave acidente poderá ter ocorrido? Um terremoto devastador, uma enchente avassaladora, uma hecatombe nuclear, uma revolução? Vamos por partes, diria uma conhecida personagem. Terremotos, segundo todos os técnicos ouvidos e consultados é um acontecimento pouco provável em nosso país. Uma enchente seria de difícil ocorrência em um local com a nossa altitude. Se houvesse ocorrido uma hecatombe nuclear, não estaria aqui para divagar sobre nenhuma destas hipóteses. A revolução, pelo que me lembro de nossa história recente e pretérita, também é uma possibilidade remota, mas não descartável.

O tempo eterno eternamente etéreo. Estou pensando que há muito tempo não consigo lembrar de minha vida. Não estou mais raciocinando direito, preciso dormir um pouco.

Quanto dormi não sei precisar, teria sido um sono profundo ou apenas um relaxamento dos sentidos? Difícil avaliar quando as horas deixam de ter um sentido cronológico, passando a serem mensuradas como faíscas e relâmpagos a cruzarem os céus de nossa consciência, iluminando e obscurecendo nossas lembranças, fantasmagoricamente presentes.

Observo em um canto, um sofá de couro, ou será couro ecológico politicamente correto, aparentemente na cor cinza, sem um estilo definido, e uma mesinha lateral em madeira, com uma luminária. Descubro uma porta que encontra-se fechada, ponho-me a imaginar a que caminhos conduzirá, quantas pessoas por ela passaram, felizes por escaparem ilesas, ou deprimidas por se saberem doentes, ou com lençóis brancos a determinarem a derrota final, testemunhando a incapacidade humana de modificar destinos traçados há muito tempo, familiares a prantear quem não mais os pertence, livre de todas as amarras que a etiqueta social e as conveniências amorosas e pessoais que a este universo o prendiam, pronto a iniciar a grande travessia para um novo início ou retorno. A resposta pertence a quem já cruzou esta ponte, e destes não temos a informação. Por outro lado, esta misteriosa porta também pode conduzir a um prosaico banheiro, com sua louça sanitária fria e insípida, toalha cuidadosamente limpa, sabonete e papel, higienicamente projetado.

Esforço-me para concentrar-me e desvendar o mistério de minha identidade. Bombeiro, engenheiro, sapateiro, motorista, fotógrafo, balconista, jogador, qual será meu destino?

Escolher um dos infinitos caminhos parece-me, agora, uma grande improbabilidade. O que faz de nós, humanidade, prisioneiros das amarras e grilhões impostos pelo dinheiro, optarmos entre sermos felizes e viver com tesão, ou definhar e envelhecer reproduzindo fórmulas que nada acrescentam ao desenvolvimento de nossa humanidade. Melancólico final para uma história recheada de expoentes geniais, revolucionários que modificaram o sentido de nossa evolução, separando-nos das outra espécies animais e nos catapultando para o alto da pirâmide evolucionista. Guerras, poluição, miséria, desperdício, chacinas, corrupção....

Hábitos. Vou tentar encontrar a saída especulando quais seriam meus hábitos. Serei um aficcionado dos esportes, futebol, vôlei ou basquete. Ou minha praia seriam os esportes radicais, Não, aparento ser mais um bebentário, um legítimo representante do clube dos levantadores de copo. Fumo, e se fumo, trago? E se trago, cheiro? E se cheiro, pico? Nossa, que viajem!

Estou quase desistindo. Hipóteses infindáveis, mistérios insolúveis, coma profundo, vida após a morte, hipnotismo, mundos paralelos, drogas pesadas, loucura, paranóia, esquizofrenia, lapso de memória, ...o final, afinal, caro leitor, você decide!

Mas só não me indique para o "PAREDÃO".

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